Relevância e impactos do projeto

Projeto de Pesquisa


Habitar: Centros históricos brasileiros em perspectiva comparada


Relevância e impacto do projeto para o desenvolvimento científico, tecnológico ou de inovação

 

Ao longo das últimas três décadas, se avolumaram diversos estudos de altíssima qualidade sobre a vida urbana brasileira, que abordam a complexidade do construir e habitar, em confluente área da sociologia, antropologia, urbanismo, ciência política, administração, geografia e demografia. São estudos complexos sobre os mais diversos temas que atravessam a vida urbana e que estruturam uma complexa e renovada agenda de pesquisa nos estudos urbanos contemporâneos: violência, crime organizado, segregação, efeito-território, ilegalismos, desigualdade, gentrificação, sociabilidades e espaço público, pobreza, cidadania e direitos, habitação, mobilidade, trabalho informal e precarizado, movimentos sociais urbanos, patrimônios culturais, governança, sustentabilidade, inclusão.


Ao tempo em que a agenda dos estudos urbanos se renova e se amplia, também continuam a surgir novas questões sobre antigos problemas, a exemplo de como recuperar áreas urbanas fisicamente degradadas, mas repleta de vida social ativa, sem provocar a indesejável curetagem social típica dos processos elitistas de gentrificação. O problema é, assim, antigo, mas a pergunta é nova porque até os anos 2000, parte significativa dos planos de revitalização dos centros históricos (não apenas no Brasil) desconsiderava a relevância, e às vezes até a existência, das populações pobres que residiam nestas localidades históricas. Sabe-se que os casos clássicos de gentrificação (HARVEY, 1992; FEATHERSTONE, 1995; SMITH, 1996; ZUKIN, 1995; BUTLER, 1997; LESS ET AL, 2008; JANOSCHKA, SEQUERA & SALINAS, 2014) resultaram em forte exclusão e/ou segregação socioespacial, com a formação de clusters urbanos de consumo para as classes de maior poder aquisitivo, em detrimento de usuários e moradores antigos, e de baixa renda, que em geral residiam (e que de certo modo ainda residem) e eram os seus principais usuários. Não por acaso, a terceira e mais recente conferência das Nações Unidas (ONU) para o desenvolvimento urbano, a Nova Agenda Urbana – HABITAT III, traz uma recomendação explícita para a implementação de chamadas boas práticas (best-practices) que evitem segregação e gentrificação.


Passadas as fases mais agudas dos processos de gentrificação, restaram, contudo, muitas questões não respondidas e equacionadas. Embora os processos de gentrification tenham praticamente se esgotado e chegado ao término no mundo anglo-saxão (JANOSCHKA & SEQUERA, 2014), processos semelhantes que ocorreram em países da América Latina, como Brasil, Argentina, Chile e México, continuam a ter outros desdobramentos semelhantes através de projetos urbanísticos de renovação de áreas centrais e empreendimentos imobiliários voltados para mesma perspectiva mercadológica de ajustar às cidades aos ciclos financeiros de especulação e reprodução do capital. 


Um dos desdobramentos em cidades latino-americanas dos processos de gentrification foi a criação dos bairros privados que reproduzem, em escala maior, os mesmos processos que fundamentaram a criação dos condomínios fechados, dos Shopping Malls, dos Centros urbanos de entretenimento. Os bairros privados repetem o apelo pela higienização (física e social), segurança, entretimento e consumo. Esses modelos de clusters habitacionais cresce em muitos países, fortalecendo a concepção de uma cidade fechada através de urbanismo cada vez mais segregador. Esses bairros são geralmente distantes dos centros das cidades, e consistem no alargamento dos condomínios fechados, agora pensados em escala mais ampla no âmbito de um bairro ou mesmo de uma pequena cidade, a exemplo da Nordelta, na Argentina (JONASCHKA, 2002) e dos bairros fechados do Chile (BORSDORF, 2002; CÁRCERES Y SABATINI, 2004).


 

Em sentido contrário a essa fuga do centro em busca de localizações distantes e privadas para os bairros fechados, as áreas centrais das cidades continuam a condessar toda a sorte de experiências dissonantes, desiguais e conflituosas da vida urbana. Neles parecem decantar parte da vida do “homem ordinário” (CERTEAU, 1984), que inscreve passo a passo a dura e vida real nas cidades modernas. O predomínio das atividades financeiras e administrativas em determinadas áreas centrais das cidades marcou boa parte dos processos históricos de ocupação dos territórios urbanos na modernidade e tornaram essas áreas centrais em núcleos operacionais das atividades que criaram o modo vida típico da Metrópole (WIRTH, 1997). Além de serem as áreas mais habitadas, eram também as regiões com maior concentração de atividades comerciais, políticas e administrativas. 


É somente quando outras áreas surgem alternativamente ao centro que é possível atribuir centralidade a alguma parte da cidade: seja pelas características geográficas da ocupação do território, seja pelo reconhecimento dos sentidos propriamente históricos à parte atribuída ou, ainda, seja pela relevância da sua funcionalidade para o resto da cidade. Entende-se, portanto, que nenhuma área da cidade é originalmente histórica ou central. Os centros não são históricos por si mesmos: eles se tornam históricos à medida em que adquirem essa atribuição de valor. E, paradoxalmente, essas áreas centrais somente são valorizadas como históricas e patrimoniais quando, em certo sentido, perdem outros valores, como a própria centralidade funcional. Em outras palavras: o centro histórico nasce quando, em certa medida, ele “morre” (CARRIÓN, 2000, 2006; LEITE, 2016, 2020).


E aqui aportamos no cerne da questão proposta para estudo, e sua relevância e impacto para o desenvolvimento científico dos estudos urbanos: o quão desativadas estavam ou estão os centros históricos no Brasil, que justifique políticas urbanas profundas de revitalização, regeneração ou gentrificação, com consideráveis impactos sobre as populações mais vulneráveis que habitam essas localidades? Quais conceitos de cidade, centro histórico e espaço público são manuseados como recursos descritivos e analíticos que embasam as justificativas técnicas das intervenções urbanísticas e arquitetônicas? As soluções propostas resolveram ou têm potencial para resolver os problemas reais relativos às necessidades estruturais e sociais existentes? Quais são os reais problemas dessas comunidades residentes e quais os projetos existentes para suas soluções? 


Essas são algumas das questões que norteiam o que esse estudo pretende responder, tendo como referente empírico os centros históricos de cidades brasileiras, nomeadamente aquelas que são consideradas de alto valor histórico (cidades que possuem áreas centrais tombadas pelo IPHAN).


Ainda se conhece pouco sobre a vida dos moradores e condições de moradia nos Centros históricos brasileiros. Espera-se que esse estudo possa contribuir para o conhecimento mais abrangente e em perspectiva comparada dos centros históricos brasileiros, sobretudo sobre sua população residente e os principais atores que disputam esses espaços no complexo jogo político dos diferentes interesses imobiliários, patrimoniais, turísticos e urbanísticos. E com isso, possa igualmente contribuir para o debate e elaboração de políticas urbanas mais inclusivas e cidadãs.

 

 

Share by: