Problema de Pesquisa e referentes empíricos

Projeto de Pesquisa


Habitar: Centros históricos brasileiros em perspectiva comparada


Problema de Pesquisa e delimitação dos referentes empíricos

Através desse projeto de pesquisa pretende-se estudar, em perspectiva comparada, os centros históricos em sua dupla inserção como importante categoria dos estudos urbanos: como Ville e a Cité, cujas abordagens podem ser localizadas nas duas tradições dos estudos urbanos que marcaram o debate moderno sobre a cidade industrial emergente: de um lado os estudos socioecológicos de inspiração simmeliana da Escola de Chicago (PARK & BURGESS, 1970), e, de outro, o urbanismo francês derivado do modernismo de Le Corbusier (1989). Voltados sobretudo à compreensão do que Wirth (1997) chamou de urbanismo como modo de vida, a Escola de Chicago ignorou a cidade construída.

Por outro lado, o urbanismo francês parecia enxergar apenas os traçados e quartiers da Ville, como se a cidade pudesse prescindir dos seus moradores. Nisso resultou uma falsa dicotomia entre Ville e Cité que aninou o debate da emergente sociologia urbana e do urbanismo modernos, mas que hoje se encontra superado (SENNETT, 2018). Pode-se afirmar que não há urbanismo qualificado que recuse entender a dimensão humana dos usos dos espaços da cidade (BRENNER, 2018), nem sociologia urbana robusta que não leve em conta a forma como o espaço construído e socialmente qualificado pelos usos sociais intervém nos modos de vida urbanos (ARANTES, 2000; LEITE, 2007; FORTUNA, 2020).

O movimento populacional que forja os centros históricos é pendular. Ora ele atrai e é convidativo, ora ele rejeita e expulsa moradores e usuários. Por vezes, apenas altera o tipo de morador e usuário. Feito de ciclos dinâmicos de atração e repulsão, conforme os atrativos existentes para as diferentes demandas humanas e interesses econômicos, os centros históricos oscilam entre lugares disputados pelos negócios e por moradores, a espaços simplesmente abandonados, renegados e esquecidos. Foi assim em parte das cidades históricas brasileiras, especialmente as capitais portuárias, e de forma semelhante em algumas emblemáticas cidades europeias e estadunidenses, tais como Londres, Barcelona, Lisboa, Paris e Nova York (SMITH, 1996; HAMNETT, 2000; SASSEN, 2015).

Em muitos centros históricos, contudo, uma característica tem sido recorrente: a tentativa de remoção das populações mais pobres que tradicionalmente habitam essas regiões mais antigas das cidades. Em estudo comparativo sobre os processos de gentrificação na Espanha e América Latina (JANOSCHKA, SEQUERA & SALINAS, 2014), faz-se um balanço crítico que ressalta que uma das mais marcantes características desses processos são o deslocamento e remoção das populações de menor renda das áreas centrais da cidade.  

No Brasil, estudos em diferentes regiões do país já demonstraram as ressonâncias negativas que esses processos de enobrecimento urbano em áreas patrimoniais têm para as populações locais, a exemplo das pesquisas nas cidades de Salvador (PINHO, 1997; CARVALHO, PASTERNAK, BÓGUS, 2010; VIEIRA, 2022), Fortaleza (BOTELHO, 2006; BARREIRA, 2007; BEZERRA, 2008); João Pessoa (SCOCUGLIA, 2004); Porto Alegre (REIHER, 2015); Goiás (TAMASO, 2007); Recife (LEITE, 2007), Belo Horizonte (JAYME & NEVES, 2010; DOS SANTOS VELOSO & TEIXEIRA DE ANDRADE, LUCIANA, 2019); Rio de Janeiro (GUIMARÃES; 2014; MALTA, 2016; BRANDÃO, 2013), São Paulo (BÓGUS & VÉRAS, 2000; RUBINO, 2005; PESSOA & BÓGUS, 2008; FRÚGOLI JR & SKLAIR, 2009; RISEK, 2011).

O processo de reordenamento espacial das metrópoles, que resultou no conhecido movimento centrífugo de expansão das cidades em direção aos subúrbios, intensificou-se com o crescimento das cidades e as novas formas de urbanização extensiva (BOGUS & PASTERNAK, 2003; MARICATO, 2008).  Ao tempo em que a cidade expandia suas atividades econômicas para as áreas periféricas, as regiões centrais foram perdendo importância, mediante a escassez de recursos e de interesse dos poderes públicos. Nesta nova configuração urbana, a consequência mais evidente foi justamente a gradual deterioração dos equipamentos urbanos e do estoque edificado dessas regiões centrais. É nesse sentido que as antigas áreas centrais da cidade vão ganhando importância histórica na medida em que vão perdendo sua capacidade urbana de se manter funcional para a cidade industrial (CHOAY, 2006).

O resultado é conhecido na história recente do urbanismo brasileiro: os centros perderam gradativamente o status e a importância como área preferencial para os novos bairros residenciais, e restaram os centros como espaços renegados, muitas vezes associados a um certo imaginário clandestino e violento da vida portuária noturna, ligado à prostituição, à boêmia, à vida marginal (LEITE & PEIXOTO, 2009).

Do misto de pobreza e preconceito sobre as pessoas pobres que passaram a habitar as antigas zonas históricas das cidades brasileiras, surgiu uma das mais ressonantes e discutíveis experiências de higienização social e urbanística da história recente. Referimo-nos aos processos de reordenamento dos centros históricos de cidades brasileiras, a exemplo do caso emblemático da “bota-abaixo” do Rio de Janeiro, da reforma do Cais do Porto no Recife (Recife Antigo), que tiveram como matriz inspiradora a reforma da Paris de Hausmann (a partir de 1852), e cuja amplitude alcançou aspectos estéticos quanto políticos.

Afora essa caricatura – já desacreditada – de velhos centros inabitados e abandonados que precisariam ser “revitalizados”, sabe-se que as áreas centrais das cidades continuaram habitadas, disputadas e com forte apelo econômico.


Pesquisa recente sobre áreas tombadas pelo IPHAN, no âmbito de um projeto UNESCO, corroborou o retrato habitado dos centros históricos brasileiros (LEITE, 2018; CORRÊA, 2021). Utilizando os setores censitários do IBGE que integram as poligonais de tombamento, a pesquisa revelou que os centros históricos têm infraestrutura urbana relativamente preservada e continuam habitados por famílias pluriparentais, sendo predominante a familiar nuclear: “Os domicílios das poligonais de tombamento dos centros históricos no Brasil são predominantemente habitações próprias com água encanada, banheiro exclusivo, coleta de lixo e rede elétrica. O entorno tem iluminação pública, é pavimentado e possui algumas rampas de acesso a cadeirantes.


Os moradores dos domicílios são em sua maioria autodeclarados brancos ou pardos, e são predominantemente jovens na faixa de 20 a 39 anos. Os responsáveis pelos domicílios são, em geral, pessoas do sexo masculino e feminino com idades medianas na faixa de 40 a 59 anos. A composição familiar típica é a nuclear com responsável/cônjuge e filhos” (LEITE, 2018, p. 18)

Os centros históricos são áreas habitadas e com sua própria vitalidade, mas, em contrapartida, são áreas, em geral, em situação de vulnerabilidade social devido aos baixos níveis de renda. A pesquisa aponta que a maioria (60,80%) dos domicílios que integra as poligonais de tombamento estudadas tem uma renda nominal per capita na faixa de 1 a 2 salários-mínimos. Embora essa classe de renda esteja acima do “meio salário-mínimo” usado formalmente para definir uma família de baixa renda (Decreto nº 6135 de 26 de julho de 2007 e IPEA) os domicílios não seriam população de baixa renda, mas se encontram em extratos inferiores de renda.   



De outro modo, a pesquisa IPHAN/UNESCO confirmou a conformação inferior de renda da população residente nas poligonais tombadas pelo IPHAN, e apontou que 70,56% do total de pessoas com rendimento mensal encontra-se na classe de renda de até 1 e de 1 a 3 salários-mínimos.

Mesmo nas fases mais ociosas dessas áreas, estima-se que nunca houve um total esvaziamento dessas áreas centrais, cuja polução residente deve ter contribuído para a evitar a deterioração dos bairros históricos, por manterem minimamente as edificações em funcionamento. Portanto, apesar de os centros históricos aparentarem, às vezes, certa inatividade em suas dinâmicas das ocupações e uso dos espaços, nunca foram espaços vazios e sem vidas.


Contudo, cabe ainda indagar se o que se sabe hoje acerca dos centros históricos permitiria formular um quadro amplo e comparativo sobre as principais características das áreas urbanas centrais reconhecidas como patrimônio cultural: quem são seus moradores, quais as condições de moradia, quais sociabilidades urbanas existentes, quais são os usos e contra-usos predominantes dos espaços, como as principais atividades econômicas se desenvolvem. Apesar de haver informações etnográficas importantes sobre algumas cidades históricas, falta um perfil comparativo que oriente um entendimento mais amplo das condições urbanas dessas localidades.


O problema geral de pesquisa, portanto, que deverá nortear o estudo em suas três diferentes etapas, pode assim ser sintetizado: como, e através de quais dispositivos urbanos integrativos, os centros históricos conseguem se manter ativos e conexos às dinâmicas sociais e urbanas mais amplas das cidades, sem perder suas singularidades?


A pergunta ainda está em um formato propositalmente abrangente (para permitir ajustes subsequentes quando do delineamento metodológico prático), mas já se assenta em indicadores que compõem tanto a Ville quanto a Cité: condições de moradia e serviços urbanos (infraestrutura urbana da Ville); caracterização dos moradores, dos usos dos espaços e das sociabilidades públicas (práticas sociais da Cité). Para cada um desses indicadores, deverão ser utilizadas variáveis que permitam os devidos rebatimentos empíricos necessários a um estudo que se pretende comparativo.


podemos entender as atividades (sociais, políticas, econômicas e/ou culturais) que especificamente concorrem para manter ativas as centralidades (funcionais e/ou simbólicas) dos centros históricos. Um dispositivo integrativo tanto pode ser uma característica antiga do centro que se manteve ativa, preservada, quanto pode ser algo que foi recentemente desenvolvido. Trata-se de qualquer atributo ou processo que confira importância, estima ou utilidade ao centro histórico, e que não interfira negativamente em suas características patrimoniais.


Derivada dessa problemática, podemos aventar a hipótese de que a importância (funcional ou simbólica) dos centros históricos varia na razão direta da eficácia conexa dos dispositivos urbanos integrativos existentes.  

A partir dessa problemática e da hipótese proposta, pretende-se estudar os centros históricos em cidades brasileiras tomando como ponto de partida a pesquisa acima referida, que fora realizada no âmbito do convênio IPHAN/UNESCO, e que resultou em uma embrionária configuração do perfil socioeconômico dos moradores de 45 áreas tombadas no Brasil (LEITE, 2018). Esse perfil socioeconômico delineou uma descrição dos centros históricos a partir de três diferentes indicadores, formados por um conjunto de variáveis estatísticas da base de dados do Censo IBGE 2010: 1. Caracterização dos domicílios particulares permanentes e seu entorno; 2. Composição dos moradores nos domicílios; 3. Renda. Para cada um desses indicadores, foi calculado um barema para os índices totais médios pesquisados nas 45 localidades estudadas. Os baremas foram construídos pela média total de cada variável que compunha os temas das localidades pesquisadas.


Para o presente estudo, entretanto, faz-se necessário um recorte amostral substancialmente menor do que as 45 localidades incialmente selecionadas para compor o Perfil do IPHAN, para que possam ser realizados os necessários aprofundamentos micro-analíticos nos níveis das variáveis relativas às práticas sociais da Cité (caracterização dos moradores, dos usos dos espaços e das sociabilidades públicas). Para aquelas localidades que carecem de dados secundários específicos para essas variáveis, pretende-se realizar  incursões de natureza etnográfica., mediante as quais serão feitas as observações diretas necessárias para conhecer, delinear e interpretar as práticas sociais típicas da vida na Cité.


Uso a expressão “incursões de natureza etnográfica” para sublinhar apenas o caráter empiricamente descritivo de inspiração etnográfica (ao modo como Antonio Arantes (2000) realizou na região da Praça da Sé, em São Paulo; e como também pude fazer no Bairro do Recife (Leite, 2007; 2013), sem, contudo, haver a intenção de realizar uma etnografia plena dos centros históricos, no sentido mais rigorosa do método. Trata-se, antes de uma postura metodológica para o estranhamento dos estudos sobre as cidades, nos moldes analisados por Cibele Rizek (2013).


O estudo será dividido em três níveis, de acordo as seguintes diferentes regiões do país: 1. [Nordeste]; 2. [Centro-oeste e Norte]; 3. [Sudeste e Sul]. Considerando a necessária exequibilidade de um estudo desse alcance, será selecionada, em cada uma dessas regiões, ao menos 1 (uma) cidade tombada por estado da federação, que tenham tido ou que possuam projetos de intervenção em suas áreas centrais implantados ou a implantar (projetos de “revitalização” urbana, gentrificação, conservação ou habitação, de qualquer natureza).


A partir desse escopo, as localidades que comporão os referentes empíricos dos estudos, são as seguintes cidades, por região:

 

1.[Nordeste]


João Pessoa (Paraíba)

Laranjeiras e São Cristóvão (Sergipe)

Natal (Rio Grande do Norte)

Penedo (Alagoas)

Recife e Olinda (Pernambuco)

Salvador (Bahia)

São Luís (Maranhão

 

2. [Centro-oeste e Norte]


Belém (Pará)

Campo Grande (Mato Grosso do Sul)

Goiás (Goiás)

 

3. [Sudeste e Sul]


Ouro Preto e Diamantina (Minas Gerais)

Porto Alegre (Rio Grande do Sul)

Rio de Janeiro (Rio de Janeiro)

São Luís do Paraitinga (São Paulo)

 


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